É como se lhe tivessem arrancado o coração e não fosse já capaz de sentir nada. As vozes que ouve não as escuta já. As pessoas que se cruzam com ela não passam de vultos enevoados que não consegue ver. Quer gritar mas não tem voz, quer andar mas as pernas não obedecem. Sente apenas um vazio, um vazio sem fim. Questiona-se se estará ainda viva. O som da buzina de um carro que passa a grande velocidade tira-a do torpor em que estava mergulhada. De repente dá-se conta de que chove. Pingas grossas batem-lhe na cara como que percebendo a urgência de a trazer de volta à realidade. Um arrepio de frio percorre-lhe o corpo fazendo-a perceber que está viva. Ensaia uma tentativa para sair dali mas o corpo parece ter vontade própria e não se move. Que importa ir ou ficar? Para ir teria de ter um motivo, para ficar uma razão. Não tem nem uma coisa nem outra, só esse vazio, esse vazio que a agarra ao chão e não a deixar sair dali. A chuva continua a cair mas deixou de a sentir.
O toque do sino, anunciando as horas, fez-se ouvir, quebrando o silêncio e trazendo-o de volta à realidade. Não dera pelo tempo passar, absorto e perdido em pensamentos, arrastado para as memórias com que ia esbarrando a cada divisão da casa, que ia percorrendo com vagar. Como não lembrar daquela casa cheia de vida, repleta de gente, numa permanente azáfama, típica das famílias numerosas. De repente, era de novo um menino, perdido em tropelias com os irmãos, qual deles o mais travesso. A voz da mãe a chamar para a mesa, o cheirinho da comida de conforto, memórias tão vívidas que um arrepio lhe percorreu a espinha. Tateou a mesa da sala, onde tantas vezes partilharam refeições, risos e alegrias. A sala de jantar testemunha dos momentos mais felizes, mas também dos mais tristes, como as despedidas dos avós e, mais tarde, dos pais. Piscou os olhos, na ânsia de afastar as lágrimas que ameaçavam brotar. Invadiu-o a nostalgia, sentindo ecoar, num lamento, a canção de Pedro Abrunho...
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