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Infância

O toque do sino, anunciando as horas, fez-se ouvir, quebrando o silêncio e trazendo-o de volta à realidade. Não dera pelo tempo passar, absorto e perdido em pensamentos, arrastado para as memórias com que ia esbarrando a cada divisão da casa, que ia percorrendo com vagar. Como não lembrar daquela casa cheia da vida, repleta de gente, numa permanente azáfama, típica das famílias numerosas.   De repente, era de novo um menino, perdido em tropelias com os irmãos, qual deles o mais travesso. A voz da mãe a chamar para a mesa, o cheirinho da comida de conforto, memórias tão vívidas que um arrepio lhe percorreu a espinha. Tateou a mesa da sala, onde tantas vezes partilharam refeições, risos e alegrias. A sala de jantar testemunha dos momentos mais felizes, mas também dos mais tristes, como as despedidas dos avós e, mais tarde, dos pais. Piscou os olhos, na ânsia de afastar as lágrimas que ameaçavam brotar. Invadiu-o a nostalgia, sentindo ecoar, num lamento, a canção de Pedro Abrunhosa… “quer
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Lugares sombrios

Deixa-me falar-te das noites em que não consigo dormir, em que a mente não se deixa serenar e teima em abrir portas. No escuro da noite não são os momentos felizes que me vêm à memória. São, inevitavelmente, aqueles que apreciaria manter adormecidos. De nada adianta tentar contrariar o pensamento quando ele voa para esses lugares, é como tentar travar o vento. É nessas longas e penosas noites que me assaltam as lembranças, não as que confortam e aquecem o coração, mas as outras, onde o sol não brilha. Sou arrastada para lugares sombrios e mantida refém, incapaz de afastar o negro véu que me cobre. Só quando o amanhecer afasta o escuro da noite sou libertada, ainda que presa permaneça.

Vidas

Sempre a vi como o espelho da dor. Dois rudes golpes, a par de todas as outras dores que foi acumulando, mataram-na, ainda que se mantivesse viva. Não é preciso estar na pele do outro para perceber o seu sofrimento, contudo, é impossível medir a mágoa que sufoca o coração e enegrece a alma. Perder um filho, depois o outro. É a morte em vida, seguramente. Resiliência é um eufemismo para quem tem de prosseguir depois de tudo ter acabado. Sobreviver, porque viver é outra coisa.

Recomeço

  Absorve as palavras, como quem bebe avidamente para matar a sede. Sem filtros, reservas ou ideias preconcebidas. Toma-as como uma orientação, como um manual para pôr uma máquina em funcionamento. Não ouve apenas, escuta com a atenção que merecem as coisas verdadeiramente importantes e, sobretudo, determinantes para fazer a diferença. Não é que as palavras sejam novas ou que nunca tenham sido ditas ou ouvidas. Não são, contudo, apenas palavras. Mais do que palavras, que encadeiam frases e conduzem a uma ideia, são o impulso, a ignição para empreender a marcha. Batem como pancadas na porta: “Não te demores onde não és feliz”. Há muito caminho para trás, mas um horizonte sem fim além.  

Sinais

Parecem sinais. Surgem do nada, como o sol a romper sob as nuvens num dia de tempestade. Uma frase, o título de um livro, uma canção, um gesto... pequenas coisas que despertam os teus sentidos, que te obrigam a pôr em questão, a olhar para dentro e também mais além. São sinais se deixares que tragam consigo a mudança. A brisa fresca num dia de verão, o agasalho numa noite fria, o abraço de conforto num dia mau, o sorriso que vem de dentro e se reflete no olhar... Sinais ou evidências ou tão somente o clique para a mudança, para o caminho que será sempre uma incerteza enquanto não se empreender a caminhada.

Nós

Disseste que era tarde. Não, gritei.  Nunca é tarde quando vive em ti o desejo de viver mais, a vontade de ser mais, a certeza de querer mais. Disseste que o tempo não volta atrás. Enganas-te, argumentei.  O tempo somos nós que o tecemos, que lhe damos sentido e que lhe imprimimos o ritmo e a intensidade. Disseste que nós já não existimos. Não, contestei.  Estamos um para o outro como o predicado está para o verbo, sem que a vírgula os possa separar. Disseste que agora é tarde. Não, contradisse.  Nunca é tarde quando os dois ainda ouvem a mesma canção. Disseste que já não valia a pena. Não, rebati. Vale sempre a pena por mais pequena que seja a chama, porque do mais ténue rastilho pode alavancar um fogo intenso.  O amor só é fogo que arde sem se ver se aos olhos não chegar a chama do coração.  

Velho

  É um dia de inverno, igual a tantos outros, demasiado curto para tarefas que exigem mais tempo, excessivamente longo para os que, sem grandes ou nenhuns afazeres, se limitam a esperar, a ver escorrer o tempo, numa cadência monótona, como quem vê desfiar a malha de uma manta que vai ficando cada vez mais pequena. Os dias de inverno são difíceis. Aliás, toda a estação lhe é penosa. O frio, a chuva, a humidade que lhe enregela o corpo e tolhe os ossos. O que o sustém são os dias de sol, sempre lhe trazem algum ânimo. O sol de inverno é como o abraço de um amigo. Aquece e conforta. Uma espécie de recompensa pela resiliência de aguentar estoicamente tantos dias cinzentos, alguns verdadeiramente penosos. É um dia a menos no calendário, um dia a mais numa vida já longa. Cada vez mais os dias são iguais, uma rotina a que já se habituou. Não faz planos, há muito que deixou de os fazer. Tranquilo, ou talvez resignado, nada exige, nada pede, nada espera. Hoje, o sol não veio. Sentiu-lhe a