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A mostrar mensagens de 2022

Nós

Disseste que era tarde. Não, gritei.  Nunca é tarde quando vive em ti o desejo de viver mais, a vontade de ser mais, a certeza de querer mais. Disseste que o tempo não volta atrás. Enganas-te, argumentei.  O tempo somos nós que o tecemos, que lhe damos sentido e que lhe imprimimos o ritmo e a intensidade. Disseste que nós já não existimos. Não, contestei.  Estamos um para o outro como o predicado está para o verbo, sem que a vírgula os possa separar. Disseste que agora é tarde. Não, contradisse.  Nunca é tarde quando os dois ainda ouvem a mesma canção. Disseste que já não valia a pena. Não, rebati. Vale sempre a pena por mais pequena que seja a chama, porque do mais ténue rastilho pode alavancar um fogo intenso.  O amor só é fogo que arde sem se ver se aos olhos não chegar a chama do coração.  

Velho

  É um dia de inverno, igual a tantos outros, demasiado curto para tarefas que exigem mais tempo, excessivamente longo para os que, sem grandes ou nenhuns afazeres, se limitam a esperar, a ver escorrer o tempo, numa cadência monótona, como quem vê desfiar a malha de uma manta que vai ficando cada vez mais pequena. Os dias de inverno são difíceis. Aliás, toda a estação lhe é penosa. O frio, a chuva, a humidade que lhe enregela o corpo e tolhe os ossos. O que o sustém são os dias de sol, sempre lhe trazem algum ânimo. O sol de inverno é como o abraço de um amigo. Aquece e conforta. Uma espécie de recompensa pela resiliência de aguentar estoicamente tantos dias cinzentos, alguns verdadeiramente penosos. É um dia a menos no calendário, um dia a mais numa vida já longa. Cada vez mais os dias são iguais, uma rotina a que já se habituou. Não faz planos, há muito que deixou de os fazer. Tranquilo, ou talvez resignado, nada exige, nada pede, nada espera. Hoje, o sol não veio. Sentiu-lhe a

Reencontro

  Com passo apressado, rosto afogueado e olhar inquieto, a mulher avança por entre a multidão, alheia aos olhares inquisitivos que a seguem. Movida pelo anseio de encontrar o que procura, não presta a menor atenção ao seu redor. Nada a detém ou abranda. Segue determinada, apesar do nervosismo. Não se dá conta da criança que quase derrubou na urgência da marcha. Afasta do rosto o cabelo que a atrapalha e avança. A espera foi longa e penosa. Está próxima do fim. É esmagadora a ansiedade. Dolorosamente angustiante. Detém-se por fim. A barreira que encontra não lhe permite avançar. E a ansiedade agiganta-se. O coração bate desenfreado como se quisesse saltar-lhe do peito. Obriga-se a respirar fundo. Fecha os olhos. O ruído em redor avoluma-se e torna-se ensurdecedor. Apetece-lhe gritar, porque não é já dona da sua vontade. As lágrimas escapam-lhe, sem que as possa evitar. É no meio desse borrão que o vê. O momento tantas vezes sonhado e ansiosamente aguardado chegara, finalmente. O coração

Casa de praia

A casa de praia tem as janelas abertas, evidenciando que há vida lá dentro. Cá fora, duas cadeiras de campismo deixam perceber a ocupação casual da pequena moradia. A dois passos, o rio corre para o mar. Além da margem, espraiam-se os campos e as casas, e, na linha do horizonte, o monte como que torna privado este bocado de território. No lado oposto, fica a praia, essa linha de costa que a erosão teima em roubar, ano após ano, reduzindo, cada vez mais, essa língua de areia, tornando cada vez mais longínquas as memórias do extenso areal de outrora. A casa da praia, que conhecemos desde sempre, mantém-se ali. Cuidada quanto baste, despretensiosa, não ostenta quaisquer luxos, cumprindo a sua missão de refúgio casual uns quantos dias no ano. Chamar-lhe casa de praia poderá ser, eventualmente, presunção, atendendo à dimensão e simplicidade da construção. Reveste-se, contudo, daquele ar simpático e acolhedor a que apetece chamar casa.

Livros

  Ler um livro é como viajar. Antes, vive-se a expetativa da viagem. Depois, saboreiam-se as memórias.  Nem sempre as viagens são o que imaginamos, seja porque não corresponderam ao esperado, seja porque superaram. Assim são os livros. Às vezes superam as expetativas, outras ficam aquém. Tal como viajar, ler um livro é vivenciar, experienciar, sentir. Quão prazeroso é “mergulhar” num livro, deixarmo-nos envolver pela história e pelos personagens. O bom que é descobrir livros que nos agarram, que sorvemos avidamente, expetantes a cada página! 

Vai

  Atira-te e diz que te empurraram. Ousa quebrar estereótipos.  Desafia-te. Antes o arrependimento pela ousadia do que a frustração da falta de coragem. Experimenta. Antes a desilusão do que a tristeza de nem sequer tentar.  Atreve-te. Nunca saberás se és capaz se não tentares.  Arrisca. Antes viver de recordações do que de sonhos.  Faz. Porque só tentando saberás se és capaz.  Avança. Deixa que a vontade te empurre. Entrega-te. Deixa que o coração assuma o leme.

Diálogos

  Falaste sem nada dizer e eu, que sempre soube ler o teu olhar, percebi. Soube ali, nesse instante, o sentido do teu pensamento. Respondi-te com silêncio, sei que me entendeste. O silêncio é das conversas mais intensas que mantemos. Dizemos tanto sem nada dizer. 

Leva-me de regresso ao passado

  Leva-me de regresso ao passado A um tempo sem tempo, sem noção do finito Onde todos os sonhos eram permitidos e passíveis de concretizar Onde um dia mais não representava um dia menos no calendário da vida Onde as lágrimas eram de riso e não de dor Onde fintávamos a inocência com a ousadia de experienciar Onde crescer era correr sem ver o fim da estrada Leva-me de regresso ao passado A um tempo onde o pouco era tanto, ainda que fosse quase nada.  Quando éramos todos à mesa.

Desapego

  Sente-se impelida a praticar o desapego. Não por um lampejo fugaz, uma vontade fortuita. Tão pouco por capricho ou egoísmo. Menos ainda por desespero ou vingança. É com uma lucidez incontestável que decide abraçar o desapego. A ironia da expressão fá-la sorrir.   Parece já sentir a leveza de soltar amarras, desatar laços, desenlaçar abraços. É fechar portas e abrir janelas. O desapego é, tão só, sinónimo de liberdade.

Outono da vida

  Chegou ao outono da vida sem se dar conta de como o futuro se fez presente tão cedo. O caminho outrora tão longo tornou-se curto, como a meta que se avista na reta final da corrida. A infância onde ontem brincava não passa de uma memória longínqua e a primavera da vida de tão efémera está igualmente distante.  Chegou ao outono da vida como quem chega ao fim do percurso sem ter gozado a viagem. A idade confere sabedoria, mas impõe lucidez. O tempo que sempre lhe faltou sobra-lhe agora. Pesam, contudo, as ausências e já não é possível recuperar abraços.

Libertação

E, de repente, colocar tudo em causa. Interrogações que se atropelam. Perguntas a exigir respostas. A sombra que ofusca a claridade. A dúvida que se agiganta. O medo a ganhar espaço. A dor que aperta no peito. A melodia que se tornou ruído. O sorriso que se apaga. E, de repente, perder o controlo. A incapacidade de dominar a mente. O mergulho no escuro. A vontade de acabar com o sofrimento. E, de repente, a libertação.