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Perda

Deambulava ao acaso no frenesim da cidade. Caminhava sem saber para onde, sem ver com quem se cruzava, sem sentir a azáfama da urbe. Os seus pés arrastavam-se no chão, como se carregasse o mundo às costas. O olhar, esse era infinitamente triste, carregado de mágoa, espelhando a dor que sentia no mais íntimo do seu ser. Sem intenção alguma, entrou por uma porta ampla, de madeira envelhecida. Não sentiu, tão pouco se deixou envolver pela paz daquele lugar sagrado. Deu por si de joelhos, ante a imagem da Virgem. Fechou os olhos para de novo os abrir e fitar a imagem, já as lágrimas escorrendo, sem controlo algum, pelo rosto marcado pelas noites sem dormir. Desejou o mesmo destino que lhe roubara o seu amor, o seu amado filho, o seu único filho, uma vida ceifada na flor da idade, num acidente igual a tantos outros que sucedem todos os dias, a toda a hora, em qualquer parte do mundo, mutilando famílias que nunca superarão tão horrenda perda. Como era grande e tão insuportavelmente dolorosa a dor que lhe oprimia o peito! Fitava a imagem, um borrão entre o vale de lágrimas, sem sequer lhe ocorrer que ela conhecia a sua dor, porque também ela a sentiu. Perdeu o seu amado filho, o seu único filho. Tal como ela. Foi-se embora sem ver que a Senhora chorou com ela.

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Vidas

Sempre a vi como o espelho da dor. Dois rudes golpes, a par de todas as outras dores que foi acumulando, mataram-na, ainda que se mantivesse viva. Não é preciso estar na pele do outro para perceber o seu sofrimento, contudo, é impossível medir a mágoa que sufoca o coração e enegrece a alma. Perder um filho, depois o outro. É a morte em vida, seguramente. Resiliência é um eufemismo para quem tem de prosseguir depois de tudo ter acabado. Sobreviver, porque viver é outra coisa.

Infância

O toque do sino, anunciando as horas, fez-se ouvir, quebrando o silêncio e trazendo-o de volta à realidade. Não dera pelo tempo passar, absorto e perdido em pensamentos, arrastado para as memórias com que ia esbarrando a cada divisão da casa, que ia percorrendo com vagar. Como não lembrar daquela casa cheia da vida, repleta de gente, numa permanente azáfama, típica das famílias numerosas.   De repente, era de novo um menino, perdido em tropelias com os irmãos, qual deles o mais travesso. A voz da mãe a chamar para a mesa, o cheirinho da comida de conforto, memórias tão vívidas que um arrepio lhe percorreu a espinha. Tateou a mesa da sala, onde tantas vezes partilharam refeições, risos e alegrias. A sala de jantar testemunha dos momentos mais felizes, mas também dos mais tristes, como as despedidas dos avós e, mais tarde, dos pais. Piscou os olhos, na ânsia de afastar as lágrimas que ameaçavam brotar. Invadiu-o a nostalgia, sentindo ecoar, num lamento, a canção de Pedro Abrunhosa… “quer

Velho

  É um dia de inverno, igual a tantos outros, demasiado curto para tarefas que exigem mais tempo, excessivamente longo para os que, sem grandes ou nenhuns afazeres, se limitam a esperar, a ver escorrer o tempo, numa cadência monótona, como quem vê desfiar a malha de uma manta que vai ficando cada vez mais pequena. Os dias de inverno são difíceis. Aliás, toda a estação lhe é penosa. O frio, a chuva, a humidade que lhe enregela o corpo e tolhe os ossos. O que o sustém são os dias de sol, sempre lhe trazem algum ânimo. O sol de inverno é como o abraço de um amigo. Aquece e conforta. Uma espécie de recompensa pela resiliência de aguentar estoicamente tantos dias cinzentos, alguns verdadeiramente penosos. É um dia a menos no calendário, um dia a mais numa vida já longa. Cada vez mais os dias são iguais, uma rotina a que já se habituou. Não faz planos, há muito que deixou de os fazer. Tranquilo, ou talvez resignado, nada exige, nada pede, nada espera. Hoje, o sol não veio. Sentiu-lhe a