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As cartas que nunca vais ler



Eis-me a escrever-te mais uma vez, mais uma carta que sei que nunca vais ler. Ficará guardada, algures, como todas as outras que te escrevi. São já tantas, tantas. Escrevo-as para ti, mas não para que as leias.
Não sabes, mas começo as frases demasiadas vezes com a palavra NÃO. Saberias se as lesses. NÃO é sinónimo de negação. É sinal de afirmação. E quantas vezes um ato de coragem. É negação quando me recuso a ver as evidências. É afirmação quando enfrento a verdade. É coragem quando ouso dizer NÃO.
Não sabes, mas vivo numa montanha russa, ora na adrenalina das alturas, ora na aflição da queda vertiginosa. As cartas que te escrevo são o diagnóstico dessa bipolaridade. Escrever-te esgota-me. Às vezes liberta-me.
Não sabes, mas escrever-te é a forma de te manter vivo.

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